Desalma (Original Globoplay) – Resenha

Grata surpresa, série une misticismo, vingança e tradições em uma aposta ousada do streaming

Título Original: Desalma
Ano: 2020
Criação: Ana Paula Maia | Nº de Episódios: 10

O Globoplay vem se firmando como uma das plataformas de streaming mais relevantes e, para não ficar para trás em relação a Amazon e Netflix, não só tem ampliado seu catálogo, mas investido cada vez mais forte em seus originais. Desalma é uma de suas apostas mais recentes – e das mais ousadas e surpreendentes.

A série, primeira criação direta de audiovisual da escritora Ana Paula Maia (Enterre Seus Mortos, Assim na Terra Como Embaixo da Terra), nos apresenta a um universo sombrio, misterioso e paranormal, terra fértil e ainda pouco explorada em termos de ficções brasileiras. O resultado é um produto bastante inovador e cativante, que bebe da melhor fonte de produções internacionais.

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Desalma nos apresenta a cidade fictícia de Brígida, no Sul do país, uma comunidade formada essencialmente por imigrantes ucranianos fugidos da guerra. Seus moradores fixaram raízes na cidade, mas sem nunca abandonar suas tradições históricas e culturais.

A trama tem início com a misteriosa morte de Roman Skavronsky (Nikolas Antunes), um antigo morador de Brígida. Após seu falecimento, a esposa Giovana (Maria Ribeiro) e as filhas Melissa (Camila Botelho) e Emily (Juliah Melo) se mudam para Brígida em uma casa deixada por Roman, pertencente a família Skavronsky – família esta que, junto com os Burko, possuem grande influência na região.

Giovana e as filhas são recebidas por Ignes (Cláudia Abreu), prima de Roman, e logo inseridas na pequena cidade e seus habitantes. Em pouco tempo, Giovana descobre que sabia muito pouco sobre o marido e menos ainda sobre sua terra de origem, que parece esconder (muitos) segredos.

A cidade está prestes a retomar as celebrações de Ivana Kupala – a noite mais curta e escura do ano, um festival pagão de grande tradição na cultura eslava que celebra a chegada do verão. Até aí tudo bem, não fosse o fato de que a festividade não era celebrada há mais de 30 anos, pois, em 1988, a última comemoração terminou em tragédia, que envolveu e afetou o destino de todos os principais moradores de Brígida – inclusive Ignes, Roman e todos os Skavronsky e Burkos. Mas ninguém foi mais afetado que Haia (Cássia Kis), uma bruxa temida (porém procurada) por toda cidade, que teve sua filha Halyna (Anna Melo) morta durante o evento.

Assim, a trama se desenvolve no tempo presente (2018), mas navegando constantemente para 1988 em flashbacks, amarrando suas pontas para que cheguemos às resoluções de ao menos parte dos grandes mistérios que circundam Brígida e seus traumatizados habitantes.

Imersão no sombrio e místico

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Haia ( Cassia Kis ) realiza ritual em Roman ( Nikolas Antunes ).

Como dito, obras com a pegada de Desalma no que diz respeito ao gênero de horror e suspense ainda são terreno raro e fértil a ser explorado em produções nacionais, e a série faz valer de sua criatividade e uma trama muito bem amarrada para dar vida a um universo muito próprio – a misteriosa Brígida – e confinar seus espectadores nos segredos terríveis guardados por seus moradores.

Ana Paula Maia converte sua já consagrada habilidade literária em uma produção audiovisual muito rica e envolvente, com personagens bem desenvolvidos, ganchos que são explorados de modo muito assertivo e, tão importante, com uma capacidade de nos deixar constantemente intrigados pelas descobertas do passado, do presente e sobre o quê de fato é um evento sobrenatural ou não na série.

Desalma também tem seus defeitos. Como muitas obras do gênero, por vezes apela à repetição de recursos como as ações esquisitas de um mesmo personagem (como o menino Anatoli, filho de Ignes), numa tentativa de fixar uma informação que já temos desde o princípio, e alguns diálogos por vezes pouco naturais, que parecem transportados de forma literal de um livro (linguagem muito formal). Entretanto, ainda que tais repetições aconteçam, não são suficientes para interromper a experiência imersiva em Brígida e seus personagens.

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Cap 01 – cena 14C – Anatoli ( João Pedro Azevedo ), mostra para Ignes ( Claudia Abreu ), algo na mata.

Personagens, aliás, em sua maioria carismáticos, e um ponto muito assertivo da mescla entre atrizes consagradas como as protagonistas Cláudia Abreu, Cássia Kis e Maria Ribeiro, que estão fantásticas em seus respectivos papéis, e uma série de novos rostos que, certamente, veremos em produções futuras do Grupo Globo.

E a trilha sonora? Coisa linda. Bebendo da fonte de produções como Stranger Things e Dark, Desalma mescla hits nacionais a músicas de rock e pop ucranianas, bem como reinterpretações de músicas do folclore ucraniano/eslavo, como o hino “Marusia”, interpretado pela atriz e cantora Bela Leindecker, que vive a personagem Natasha. Há, ainda, um estrondoso cover de Tainted Love feito pelo Sepultura exclusivamente para a série.

Fora a playlist em si, temos uma sonoplastia fantástica, que arrepia na sensibilidade e climatização do horror. Talvez você a ache parecida com Dark em diversos aspectos, e com razão: o sonoplasta Alexander Wurz, responsável pela série alemã, foi o consultor da produção brasileira comandada por Alexandre de Faria.

Semelhanças e diferenças entre Desalma e Dark

Para quem acompanhou a série alemã, é impossível não fazer alguns paralelos entre as duas produções. Além da sonoplastia já citada, Desalma tem outras semelhanças com Dark: a ambientação em uma cidade interiorana fictícia e marcada por tragédias, famílias que estão interligadas e que ocultam mistérios entre si, o desaparecimento de determinadas personagens e a alternância de narrativa entre passado e presente. Há, ainda, algumas referências mais claras em Desalma para Dark (pode-se dizer easter eggs).

Entretanto, como bem pontua a youtuber Carol Moreira em seu canal, as duas séries possuem premissas (e gêneros) totalmente distintos: enquanto a série alemã é uma ficção científica, a série do Globoplay é um horror psicológico e sobrenatural, gênero mais próximo, por exemplo, de produções como A Maldição da Residência Hill, da Netflix.

Uma viagem à Ucrânia no Brasil

Halyna ( Ana Melo )

Ponto de enorme destaque da série é a imersão na cultura ucraniana, um trabalho de extrema competência de todo time envolvido. Desalma foi filmada em cidades das serras gaúcha e catarinense, desenhando o ambiente dotado de florestas, lagos e campos de colônias ucranianas no país como a cidade de Mallet, no Paraná.

Além dos cenários, a produção se aprofundou no estudo do folclore e mitologia ucraniana, criando uma reprodução fiel do festival de Ivana Kupala, por seus trajes, tradições e termos. Além disso, o elenco contou com um professor ucraniano – os atores não só aprenderam sobre o idioma, mas também diversos aspectos da cultura do país, conseguindo incorporar aos personagens falas, sotaque e mesmo comportamentos.

Há mais uma camada, que também aparece em alguns momentos, sobre o orgulho ucraniano, o desejo de independência da União Soviética e o contexto de Guerra Fria e Tchernóbil. Elementos histórico e culturais se cruzam para dar vida a uma comunidade genuinamente ucraniana em solo estrangeiro.

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Por sua riqueza de detalhes e uma produção fabulosa, Desalma dialoga com públicos que já estão habituados a séries do gênero, porém estrangeiras. Essa percepção é uma alavanca para que a série se consolide como um sucesso tanto aqui como lá fora. Tanto que já temos uma segunda temporada confirmada. É, portanto, uma aposta ousada e que vale a pena ser conferida – e, quem sabe, um empurrãozinho para que mais obras do gênero se desenvolvam no país?

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ANÁLISE CRÍTICA - NOTA
Desalma
Diego Betioli
Escritor, publicitário, louco por esportes e entretenimento. Autor de A Última Estação (junto com Rodolfo Bezerra) e CEP e um dos fundadores do Meta Galáxia.
desalma-original-globoplay-resenhaCom drama e mistério, Desalma surpreende em formato pouco explorado no Brasil bebendo de fontes como Dark para dar vida a uma série ousada e cativante

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