Existem obras sobre as quais é impossível se ficar indiferente. Arlindo, certamente, é uma delas.
A graphic novel criada por Luiza de Souza (@ilustralu), publicada originalmente na internet e agora consolidada em um belo exemplar lançado pela Seguinte – selo jovem da Companhia das Letras – é um perfeito retrato de um quadrinho que consegue ser suave, divertido e, ao mesmo tempo, e com a frequência necessária, um soco no estômago do leitor. Não à toa, a obra foi um sucesso nas redes sociais e recebe enfim sua merecida publicação física.
Sinopse
Arlindo é um garoto cheio de sonhos e vontade de encontrar seu lugar no mundo. Tudo o que ele quer é seguir sua vida de adolescente na cidadezinha onde mora, no interior do Rio Grande do Norte. Ele aluga filmes na locadora com as amigas todo sábado, sente o coração bater mais forte pelas primeiras paqueras, canta muito Sandy & Júnior no chuveiro, e ainda cuida da irmã mais nova e ajuda a mãe a fazer doces para vender.
Por mais que ele se esforce e dê o seu melhor, muita gente na cidade não aceita Arlindo — o que traz uma série de problemas na escola e até mesmo dentro de casa. Aos poucos, porém, ele vai perceber que vale a pena lutar para ser quem ele é, ainda mais quando tem tanta gente com quem contar.
Preconceito, empatia e lugar de fala
Arlindo poderia ser descrito como um drama sobre a juventude nos anos 2000, sobre descobrir-se quanto a seus anseios e sua sexualidade e como lidar com tudo isso na mais complicada das fases da vida. Mas é mais que isso; é, afirmativamente, um retrato – ainda em 2021 – cruel e verossímil da realidade que adolescentes, descobrindo e entendendo-se homossexuais, enfrentam diante da sociedade e especialmente de seus próprios familiares.
Como leitor hétero cis, não possuo lugar de fala quanto à posição dos personagens. Todavia, me deparei, ao longo da HQ, com diversas situações e diálogos que vi e ouvi ao longo da minha vida estudantil (a qual vivi no mesmo período retratado no quadrinho) com colegas gays e lésbicas – e que, à época, entendi como “brincadeiras”, que por vezes endossei ou, no mínimo, me omiti. E que, certamente para eles, foram verdadeiras facadas.
Ver – e de certa forma rever todos esses quadros representando o preconceito sofrido por Arlindo e os demais personagens – é doloroso, porém necessário. O comentário do pai machão; os cochichos dos colegas, agressões, os vizinhos faladores. Cada comentário insinuado, olhar atravessado, provocam feridas nesses personagens, que choram isolados em seus quartos – e contam apenas consigo mesmos e uns aos outros. Comentários e olhares que matam na vida real.
Arlindo se apresenta como uma poderosa obra LGBTQIA+, um marco lançado em meio ao mês de junho. Se a HQ possui um poder de representatividade tão precioso de identificação a este público, se faz ainda mais necessária para quem está fora desse quadro – provocando ao leitor a empatia, que deveria ser básica e nata a qualquer um de nós.
Cores, nostalgia e construção da narrativa
Embora norteado por um poderoso drama, Arlindo ainda é uma narrativa juvenil, e por isso apresenta-se suave, ágil e colorido, o que torna a leitura muito fluída e envolvente. A paleta de cores de Ilustralu, focada entre o rosa, amarelo e cinza, dá todo um tom de vivacidade e contrastes, ilustrando bem os sentimentos de Arlindo, Lis, Mari e cia. – por ora, explodindo de felicidade e amor; por vezes, afogados em tristezas e dúvidas.
Situado no RN, o quadrinho tem diálogos que transmitem os sotaques e expressões locais, aliados às gírias da época, os nostálgicos anos 2000. Neste ponto de ambientação, a autora cria um universo que espelha bem o clima interiorano da região, onde todo mundo se conhece e se encontra em pontos específicos da cidade, como determinadas praças ou pátios.
A nostalgia 2000 é um dos pontos mais legais da HQ. Se você viveu intensamente esses anos, vai logo se identificar e se apaixonar pelo universo do quadrinho, recheado de diálogos no MSN, mensagens de SMS, músicas de Sandy & Júnior, Pitty e videolocadoras (as referências me pegaram em cheio demais). Arlindo e seus amigos divertem-se e vivem intensamente essa era de tecnologia ainda “engatinhadora” no Brasil e nos transportam de volta a esse período muito louco (e por que não ler escutando sua música favorita dessa época?).
A música é parte importantíssima de Arlindo. O letramento é muitas vezes baseados nas composições dos artistas supracitados, em cenas que expressam primorosamente os sentimentos dos personagens (algo que era ainda mais comum naquela época, em que usávamos o MSN, ou “gravar um CD para alguém”, como forma de demonstrar o que queríamos para quem a gente gostava). Essa aplicação, casadas às cores e os quadros grandes e expressivos de Lu, tornam a graphic uma experiência única e muito agradável, inventiva por si só.
Arlindo: Para todas as idades, todos os públicos
Arlindo é indispensável. Uma obra tocante, cativante, divertida e necessária em todas as medidas certas. É sim um drama, uma obra de representatividade, e que tem o poder de tocar os corações duros e incompreensíveis sobre aquilo que deveria ser a mais simples das coisas: todo mundo deveria poder ser quem é, como é, e ser feliz e apoiado por isso.
Como dito numa das passagens mais belas da HQ: “talvez se tudo fosse diferente, eu não teria essa vontade de correr, de ir embora, que bate o tempo todo. Mas se fosse assim, eu não seria quem eu sou. E essa não é uma opção”.
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