A Segunda Guerra Mundial é, possivelmente, o acontecimento histórico mais marcante da história da humanidade no que diz respeito ao impacto cultural e social delegado de seus acontecimentos. São incontáveis as obras que retratam este período sombrio e suas consequências, sob todas as diferentes artes possíveis. Ainda assim, há um lugar de destaque para a graphic novel O Relatório de Brodeck.
Lançamento da editora Pipoca & Nanquim em 2018 no Brasil, trata-se do compilado de dois tomos assinados e ilustrados pelo francês Manu Larcenet, adaptando o romance homônimo de Philippe Claudel. A edição do PN é um lindo material que conta com uma luva em formato vertical (a HQ possui dimensão horizontal), e é, ainda hoje, considerado um dos melhores títulos da ainda jovem editora de Bruno Zago e cia.
O Relatório de Brodeck situa-se no fim da guerra e nos apresenta ao personagem que encabeça o título da obra e o vilarejo onde habita: uma aldeia alemã (ou em alguma localidade próxima à fronteia, não fica claro) localizada em alguma região muito distante e isolada entre as montanhas. A narrativa tem início após a morte de um visitante estrangeiro que se hospedara algum tempo no local. Nunca tendo revelado seu nome, o misterioso homem foi batizado pelos aldeões de “Anderer” (do alemão, o “outro”, ou neste sentido, um intruso, forasteiro).
Sabe-se, logo de cara, que o Anderer foi assassinado pelos próprios habitantes do vilarejo. Brodeck, que foi à taberna onde o crime ocorreu apenas para buscar manteiga, é encarregado pelo prefeito e as lideranças locais de produzir um relatório oficial sobre as circunstâncias do crime, defendido pelos moradores como algo justificável e inevitável.
Brodeck, então, passa a redigir o relatório, mas também a escrever suas próprias memórias, mostrando todas as faces da história e como deu-se de fato a morte do Anderer. Através das memórias do protagonista, conhecemos também seu passado – ele próprio também um “anderer”, sua passagem pelos campos de concentração, a tragédia que acometeu sua família e como a guerra afetou o vilarejo e seus habitantes.
Um relatório sobre a (des)humanidade
Como dito acima, existem infinitas obras sobre a Segunda Guerra Mundial, sob as mais diversas óticas: a ascensão do nazismo, a vilania de Hitler, a transformação sobre os países envolvidos, o triunfo dos vencedores e a derrocada do Eixo, e os impactos sobre as nações hostilizadas e massacradas pelos nazistas.
O Relatório de Brodeck, por sua vez, distingui-se na abordagem e na temática. Tem a guerra como pano de fundo, suas cicatrizes, mas debruça-se em um olhar intimista, tendo como “estudo de caso” uma população isolada que passou a maior parte da guerra alheia ao que acontecia no mundo e mesmo na própria Alemanha – o que é muito bem descrito quando o vilarejo recebe pela primeira vez a “visita” das tropas alemãs já em um momento em que a derrota de Hitler era iminente.
A HQ funciona, de fato, como um grande relatório da perspectiva de um homem comum, justo, que sofreu e sobreviveu aos horrores do holocausto, e que encontra, em seu retorno à terra onde cresceu, um rastro de desumanidade. Brodeck não poupa palavras para mostrar como seus companheiros, amigos e vizinhos se tornaram (ou se revelaram?) seres vis, talvez apenas acentuados pela passagem da guerra em suas vidas, mas cuja essência possivelmente estava ali, o tempo todo.
Com diálogos poderosos e provocadores (impossível não ressaltar a conversa entre o protagonista e um padre), O Relatório de Brodeck discute, essencialmente, um dos maiores pesadelos do homem: confrontar a si mesmo. E nada como a guerra para escancarar no espelho seus reflexos mais obscuros. Como dito pelo mesmo padre:
“A guerra é o triunfo do medíocre… O criminoso recebe a auréola de santo e nós nos curvamos perante ele, aclamando-o… A vida parece tão monótona para os homens, que eles preferem a ruína!”.
A importância do traço de Larcenet
Quadrinista de longa carreira, Manu Larcenet possui um traço singular e rígido, forte, que dá a esta narrativa um poder de imersão atmosférico e sentimental único. Dotados de sombras, os quadros nos remetem à solidão do vilarejo, não só no aspecto físico que este de fato se encontra, mas no ambiente constante em que os personagens estão inseridos.
As choupanas pouco iluminadas, amadeiradas e cheias de retalhos; as noites sombrias e os dias tomados pela neve são retratados de um modo belo e igualmente triste. Mas nada se iguala à expressão dos personagens: Larcenet consegue imprimir todo sentimento de dor, medo, raiva, tristeza e mesmo indiferença nas trocas de olhares e mesmo em suas rugas e silhuetas. Muitos dos quadros, inclusive, apresentam apenas um personagem e seu olhar, que dizem muito mais do que uma dezena de palavras.
Os diálogos, portanto, aqui apenas se somam e engrandecem uma narrativa fortemente construída sob o desenho realista e fortemente sentimental do autor, narrativa da qual se torna impossível ficar indiferente.
O Relatório de Brodeck pode ser considerado facilmente uma das mais poderosas e indispensáveis obras da nona arte no século XXI.
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