Em meio a greves de roteiristas e atores, bilheterias de barbies e cogumelos de oppenheimers, novo longa de Wes Anderson aborda os bastidores da arte e as angústias da vida humana
Quem já assistiu a um dos trabalhos de Wes Anderson provavelmente vai lembrar que o diretor possui um estilo bastante peculiar na direção de arte. Parece que estamos sempre vendo um filme de época.
E, se você usa redes sociais (ué), há alguns meses deve ter se deparado com muitos vídeos seguindo a trend “Agindo como se estivesse num filme de Wes Anderson”, nos quais as pessoas registravam o que quer que fosse, imitando a estética das produções do diretor. Tem até um perfil no Instagram totalmente dedicado a fotos da realidade “imitando Anderson”.
Em Asteroid City, você encontra tudo o que você espera estilisticamente do diretor. Mas sobre o que é esse longa? Só tenho duas respostas: uma extremamente extensa, e outra que cabe em uma frase, mas que confunde mais do que explica. É uma película com um programa de TV sobre uma peça, mostrando o processo criativo da equipe enquanto as personagens evoluem ao desenvolverem os próprios atores que lhes dão corpo, e criam a peça que estão interpretando.
Timing perfeito?
Asteroid City se passa em outra época, entre o lançamento das primeiras bombas atômicas (1945) e da boneca Barbie (1959), mas o timing é acertadíssimo. É hilário que o título esteja em cartaz no mesmo período (e até nas mesmas salas) que Oppenheimer e Barbie – e tem até Margot Robbie fazendo uma ponta!
Pincelada de coloridos da “última época da inocência”, distração com celebridades, a indiferença das personagens aos cogumelos atômicos visíveis no horizonte, e o temor da ameaça dos “Russos e da China Vermelha”, a narrativa faz parecer que pouca coisa mudou nesses quase 70 anos.
Na primeira cena em que uma explosão ocorre, a bomba parece causar menos desconforto que as 3 meninas que rejeitam serem chamadas de “princesas”. Um momento Barbie, quem sabe?
Metalinguagem ou homenagem?
Apesar de talvez tornar o ritmo menos palatável para o público em geral, com alternâncias entre peça e documentário, a metalinguagem também sugere um senso apurado de timing. De início, sabemos pelo narrador-apresentador que o filme a que estamos assistindo é um documentário de TV sobre uma típica peça de teatro americana que não existe.
As conversas entre a atriz Midge Campbell (Scarlett Johansson) e o fotógrafo Augie Steenbeck (Jason Schwartzman), cada um pela janela do seu quarto, parecem uma conversa entre personagem e espectador – mas não nos moldes de A Rosa Púrpura do Cairo.
Há uma história dentro da história, de como o dramaturgo criou o roteiro que nos está sendo revelado, com a colaboração dos próprios atores da peça. E como tudo está intrinsecamente ligado à vida pessoal: a esposa do diretor mostra como uma das cenas da peça deveria ser encenada, ao se despedir dele definitivamente.
Pode ser uma alusão à complexidade do trabalho de escritores, roteiristas, diretores, atores, produtores e todo o ecossistema que existe para a entrega de um produto final para o público, seja cinema, teatro, tv ou streaming, num processo de criação coletivo.
As filmagens, ainda em meio a restrições da pandemia, fez com que toda a equipe ficasse hospedada no mesmo hotel e fizesse as refeições em conjunto, adicionando ainda outra camada de metalinguagem e de coletividade.
Inevitável pensar que a cena de toda a equipe da peça gritando “você não pode acordar se não pegar no sono”, em uníssono, seja a metáfora da consolidação de um sindicato unido, na esteira das greves de roteiristas e atores iniciadas neste ano. E perguntar: inteligência artificial dorme? Sonha? Tem propósito?
Busca por sentido
Se o autor estava à procura da razão de ser da história que estava criando, distribuiu às personagens a dor da falta de propósito.
O garoto que precisa de desafios para sentir que existe. A atriz que é talentosa comediante, mas prefere papeis trágicos e vítimas de abuso. O fotógrafo de guerra enviuvado que não sabe o que fazer com a família. O discurso do general sobre o vazio da própria vida, confessa não pertencer ao evento de ciência que apresenta, enquanto anuncia o patrocínio de uma megacorporação. O avô anglicano que cede aos rituais pagãos das netas, e que talvez tardiamente perceba que a religião o tenha afastado de sua família. A ciência e a religião, que em tese são ferramentas para explicar o universo, não conseguem dar conta do alienígena-elefante na sala. A cidade que tem sua pedra fundamental roubada (e devolvida) por um extraterrestre sem explicações, mas ao final de uma semana está de volta à mesmice.
Um evento que revoluciona a percepção do universo, reduzido a um espetáculo de mídia, que se desfaz completamente após sete dias – talvez sem efeitos na humanidade.
Esse tema culmina em uma das cenas mais interessantes do filme – e talvez o momento em que metalinguagem vira metafísica –, Augie, o ator que faz o ator principal conversa com Schubert, o diretor do espetáculo e diz:
“Eu ainda não consigo entender a peça”.
O que se segue é uma conversa dolorida sobre a angústia de ser humano, de não saber o que se está fazendo e ter que seguir adiante apesar de tudo, com nossas manias e inseguranças sobre a existência de sentido na vida. Mesmo com a certeza do desconsolo: Augie termina dizendo “preciso de ar fresco”, ao que Schubert responde: “você não vai encontrar”.
O público talvez sinta essa mesma dúvida. O desenrolar entrecortado nas diferentes proporções da fotografia – o documentário e bastidores da peça em preto e branco no antigo formato de TV, alternando para colorido em widescreen da apresentação em si –, cada uma com seus diferentes níveis de diálogo e estilos, exige uma certa atenção da audiência. Mas não deixa de ser um paralelo interessante com o tema proposto.
A própria equipe também se questionou a respeito. Em uma sessão comentada, Anderson contou que a dúvida era frequente entre os atores durante as filmagens, e a resposta sempre era: “pergunta pro Jeff (Goldblum), ele entendeu o filme”. E o diretor confessou gostar do fato de que a pessoa que realmente entendeu tudo é o alienígena.
Em certo ponto, Dinah diz a Woodrow: “Às vezes, acho que eu me sentiria mais em casa fora da atmosfera da Terra”. Quem precisa de ar fresco?
Sequelas da Pandemia
Filmado entre agosto e outubro de 2021, o longa também tem seu momento de quarentena, quando um episódio atípico força as personagens da peça a permanecerem confinadas até segunda ordem do presidente.
O diretor descreve a cena: “A já tênue compreensão da realidade do nosso elenco de personagens diminuiu ainda mais na quarentena, e o grupo começa a ocupar um espaço das dimensões emocionais mais peculiares.”
Até mesmo uma chamada de vídeo é preparada, mas, como esperado, não funciona logo de cara. Confrontado, o personagem de Matt Dillon diz: “tudo está conectado, mas nada funciona”.
É 2023. Parece que estamos vendo um filme de época. A nossa?