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A vida perfeita só existe nos olhos dos outros

As inúmeras sutilezas de Dias Perfeitos, que alinha estabilidade e transformação como belezas necessárias na vida cotidiana

“Kondo wa kondo. Ima wa ima”, (próxima vez é a próxima vez; agora é agora) diz Hirayama responde à sobrinha Nico, que insistia em saber quando poderiam ir ver o mar. Do pouco que sei de japonês, essa palavra “kondo” (próxima vez) sempre me deixou intrigado. Ela é composta por dois ideogramas: “kon” (agora, atual, corrente) e “do” (vez), ou seja, dizem “esta vez” para dizer “a próxima”.

Por mais que os filmes abordem temas humanos universais, e que o processo de globalização tenha se acelerado imensamente com a internet, eu sempre me pergunto o quanto a gente deixa de perceber em uma obra que envolve culturas tão específicas e diferentes da nossa. Invariavelmente, sinto que um “tradutor cultural” me daria camadas ainda mais interessantes a filmes como Dias Perfeitos, trabalho de Wim Wenders que está agora disponível na MUBI (se você gosta ou quer conhecer mais de cinema, assina porque vale muito!).

No longa, que concorreu ao Oscar de Melhor Filme Internacional, acompanhamos a rotina do protagonista Hirayama, que trabalha no primeiro turno diário da limpeza de banheiros públicos no distrito de Shibuya, em Tóquio.

Todos os dias, ele acorda ao som de uma pessoa idosa varrendo as folhas caídas na rua onde mora. Levanta, cumpre seu ritual – arruma a cama, faz a higiene pessoal, cuida das pequenas mudas de bordo japonês que coleta nos jardins, pega chave-celular-carteira-trocados, um café na vending machine e sai de carro. Escolhe, entre as muitas fitas cassete, o que vai ouvir naquele dia (talvez o único momento mais dependente de sorte?), e percorre seu itinerário de limpeza.

BUSCA PELO ORDINÁRIO

O protagonista resgata o sobrenome da família de Tokyo Story (Tokyo Monogatari, 1953), considerada uma das obras-primas do diretor Yasujiro Ozu, a quem Wenders declarou fazer uma homenagem em Dias Perfeitos. O nome combina dois ideogramas: Hira (que tanto pode significar plano, nivelado; como simples, comum, ordinário; e até calmo, gentil) e Yama (montanha). O contraste entre planície e montanha? Ou montanha da simplicidade, da calma?

De fato, a vida e o trabalho de Hirayama são ordinários, e ele parece estar em paz com a repetição cotidiana, inclusive em seus horários de lazer. Mais do que isso, acontecimentos inesperados são momentos de apreensão e estresse – ainda que tenha a habilidade insuspeita de lidar com as situações e até se sentir bem com elas. Mesmo assim, a busca por estabilidade parece afastar Hirayama dessas emoções – boas ou más. “Bom seria se nada mudasse”, diz Mama, a dona do pub que Hirayama frequenta.

A narrativa nos conduz de forma a não termos sobressaltos. Os pequenos imprevistos são a própria rotina – o colega que se demite, a visita de parentes, conhecer uma loja nova. A vida é feita da rotina ou do que nos faz fugir dela? De tudo, afinal. Querer evitar a impermanência é tentar evitar a própria existência.

Seria apenas o anseio por uma vida rotineira? Ou saudosismo, materializado na sua coleção de fitas cassete, na máquina fotográfica analógica e sua rotina de surpresas conhecidas na revelação, no banho público, na busca por livros antigos no sebo? Ou, ainda, o acervo e os hábitos pontuam cronologicamente a ruptura com sua família? Seja como for, esse anacronismo pode ser um contraponto ao modo como vivemos atualmente.

MUNDOS DIFERENTES

As pessoas existem em mundos diferentes, diz a irmã Keiko, sobre Hirayama. O homem idoso desabrigado que dança em meio aos pedestres apressados é sempre merecedor de um olhar de admiração e interesse do protagonista – como se fosse a única pessoa livre, diferentemente das demais, a personificação do objetivo de vida de Hirayama. Seria outro paralelo a Tokyo Story, em que há o confronto entre um Japão velho que desaparecia e o seu “substituto”, um Japão “moderno”, ocidentalizado?

Seu colega Takashi e o crush Aya. A irmã Keiko e a sobrinha Niko. A dona do pub Mama e seu ex-marido. Todos vivem aprisionados a expectativas de frustração, talvez sem perceber que há transformações em curso que podem ser libertadoras.

A solidão, o custo de ser feliz nas relações interpessoais também disfarçado na frase de Takeshi – “Não dá nem pra se apaixonar se não tiver dinheiro?”

BURAKUMI – UM PÁRIA, MAS POR OPÇÃO

Não sabemos o que levou Hirayama a alcançar a vida que leva atualmente. Descobrimos, pouco a pouco, que ele tem parentes, que a sobrinha gosta dele, que teve uma rusga com o pai no passado (provavelmente, a razão pela qual se afastou de todos), e que a irmã gostaria que ele voltasse ao convívio da família.

Ao mesmo tempo, parece ter optado por uma vida de pária – como os burakumi, pessoas com ofícios ou de origens ligadas a tabus para a cultura japonesa, que eram segregados até meados do século XX. Se você assistiu a “A Partida”, de Yojiro Takita, de 2008, pode entender um pouquinho melhor o que estou falando: Masahiro Motoki interpreta Daigo Kobayashi, um violoncelista que, diante do encerramento da orquestra na qual tocava, se vê forçado a encontrar outro emprego e acaba se realizando em uma funerária – não sem antes enfrentar o preconceito de todos à sua volta. Temos uma pequena amostra disso na cena em que ele “resgata” uma criança presa em um banheiro e a retorna para sua mãe, sem receber ao menos um agradecimento (e estamos falando do Japão, tente medir o peso dessa falta). Em “A Partida”, Daigo encontra redenção no reconhecimento das pessoas, mas não é esse o objetivo de Hirayama. Sua redenção está em seu trabalho invisível, na previsibilidade da rotina das pequenas coisas, das músicas sorteadas mas pré-curadas, na luz do sol entre as folhas do bordo japonês – quem sabe, um dia, das mudas que ele mesmo cultivou.

Já fui um monte de coisas e gostei de quase nada. Mas gosto do fato de que nada se limita a apenas contar uma história. Minha escala personalíssima das resenhas: [ 1 - 1.5 ⭐: gostei não ] // [ 2 - 2.5 ⭐: nhé ] // [ 3 - 3.5 ⭐: gostei ] // [ 4 - 4.5 ⭐: gostei muito ] // [ 5 ⭐: carai! ]

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