Consagrado diretor japonês une forças com estrelas do cinema coreano em Broker – Uma Segunda Chance
Uma das coisas que eu mais gosto na experiência de ir ao cinema é ver a reação do público, geralmente quando as luzes se acendem. E sempre acho intrigante quando vejo espectadores irem embora no meio da sessão. Foi o que aconteceu no dia da estreia de Broker – Uma Segunda Chance, quando, já na primeira metade do filme, alguns poucos abandonaram a Cinesala na véspera de feriado. Será que ainda não conheciam o trabalho do diretor Hirokazu Kore-eda (Assunto de Família, Ninguém Pode Saber, Makanai: Cozinhando Para a Casa Maiko)?
Em Broker, o diretor retoma temas de família e críticas sociais já vistos em filmes anteriores. Desta vez, o enredo começa com So-young (inevitável associar a “tão jovem”, na tradução do inglês) abandonando seu filho recém-nascido à porta de uma igreja, mas ele acaba nas mãos dos traficantes de bebês Sang-hyun (Sang Kang-ho, de Parasita) e Dong-soo. Ela depois se arrepende e, todos juntos, vão tentar encontrar um lar para a criança, enquanto tentam escapar da perseguição de duas policiais (Lee Joo-young e Bae Doona, de Stranger, Sense8 e Cloud Atlas).
A película flerta com diversos gêneros ao longo da narrativa: perseguição policial, suspense, romance, comédia. Entretanto, o resultado é um típico Kore-eda: o elenco não se demora nessas categorizações, e o que predomina são dramas de “vida comum”, retratados com delicadeza em diálogos e personagens. Pode soar incompatível com a história de um grupo de pessoas que querem vender um bebê (por isso as pessoas foram embora do cinema?), mas esse recurso adiciona uma camada indispensável de amadorismo (e humanidade) aos protagonistas e traz verossimilhança ao que vai acontecer ao longo das duas horas de duração.
(Como sempre, atenção: contém spoilers)
Ao longo da trama, acompanhamos como as instituições oficiais da sociedade são incapazes de oferecer garantias para os casos em que as coisas saem da conformidade. As soluções que o Estado (representado pela Assistência Social), a Igreja, o casamento, a polícia e a família oferecem são inflexíveis e não conseguem respeitar individualidades, sendo incapazes de resolver o problema. Orfanatos e igrejas não conseguem encontrar um lar para muitas crianças, que atingem a maioridade sob sua tutela. A polícia age contra a lei para alcançar seu objetivo e, mesmo assim, falha – a passagem em que o policial rodoviário aborda o grupo simboliza o quanto a atuação do poder público é meramente formal e burocrática: a intervenção ocorre por motivos menores, sem que o problema real seja percebido. Por fim, citada pelas próprias investigadoras como instituição ineficaz, a assistência social sequer tem participação na história.
O apoio fica a cargo do acaso e da boa vontade de pessoas também à margem da sociedade. Encontros solidários preenchem os vazios deixados pelas instituições estabelecidas, especialmente os laços familiares. So-young, a mãe do bebê, foi resgatada por uma cafetina (a quem chamam de “mãe”); seu filho Woo-sung é fruto de uma relação extraconjugal; Sang-hyun acolheu Dong-soo (abandonado pela mãe), mas não é capaz de manter uma relação com a própria filha.
O acolhimento só surge com o reconhecimento da dor alheia, o gerador de cumplicidade dos órfãos, dos traficantes de bebês, da cafetina, da policial, de So-young. Na primeira metade do filme, alguns personagens culpam as mães que deixam seus filhos para adoção mas, mais tarde, a cena da roda-gigante as redime. So-young conta a Dong-soo suas razões para ter abandonado a criança, e isso o faz ver a própria mãe com mais profundidade: existem motivos aceitáveis. Algumas mães são colocadas em situações-limite, em que não parece haver outra alternativa.
Da mesma forma, a união do grupo evolui à medida em que se conhecem e se aceitam. Inicialmente, improvisam simulacros de família nas negociações para vender o bebê, mas sofrem para imaginar e entender quais seriam seus papeis naquela relação falseada. Afinal, são filhos abandonados, negligenciados e um pai ausente, portanto são funções que jamais conheceram ou souberam desempenhar. O processo culmina na sequência em que So-young, a mãe, agradece a cada um do grupo por terem nascido e é surpreendida por Hae-jing, que agradece a ela também. Os abandonados têm suas vidas reconhecidas e valorizadas. So-young recebe a aprovação espontânea como mãe, marcando o nascimento daquele núcleo familiar inesperado.
A quadrilha é apresentada de forma inesperadamente humanizada, contrapondo-se à frieza burocrática das instituições. Mas não queremos sentir empatia por criminosos que comercializam crianças, claro. Assim, o final da transformação do grupo acontece enquanto fogem de trem. Sang-hyun tenta dizer a So-young que é possível desistir e não vender Woo-song. As luzes que entram pelas janelas do trem alternam o claro e o escuro, num jogo do que está oculto e o que está à mostra. Na sequência, temos uma vista aérea do comboio atravessando um túnel, num paralelo com a transposição de um obstáculo: não serão mais traficantes de bebês.
Acompanhar esse desenvolvimento define também a virada da detetive Su-jin: antes perseguidora implacável, decide propor à mãe em fuga um novo acordo. E, como descobrimos depois, a policial promete cuidar de Woo-sung enquanto a mãe estiver presa. Na sequência final, vemos que a detetive busca uma decisão para o futuro da criança com todos os outros envolvidos, ela também agora parte dessa família.
Pode até parecer que não há redenção, só que ela vem na forma de castigo penal/social (Dong-soo e So-young vão para a cadeia, Hae-ji retorna para o orfanato) ou, para quem a pena não é decretada, resta a culpa: (Su-jin assume a guarda de Woo-sung, e Sang-hyun abandona o dinheiro e perde sua recém-criada família ilegítima).
Ou seja: não há escapatória – a não ser, quem sabe, por meio da busca por um futuro decidido coletivamente, sem os julgamentos feitos pela polícia, justiça, ou por amarras de parentesco.
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