Degenerado (HQ de Chloé Cruchaudet) – Resenha

Uma obra ímpar sobre amor, guerra, questionamento sobre si mesmo e a sociedade! Um dos melhores lançamentos de 2020.

Resenha de Degenerado, quadrinho com roteiro e arte de Chloé Cruchaudet

Paul… você se lembra Paul? De como era bom… ser eu… tudo era mais leve… mais colorido… confesse, você até que gostava. A vida tinha um outro cheiro, outro gosto, quero dizer… não apenas o gosto do batom de cereja… você se lembra… ser objeto de desejo… e fazer filas se formarem só com o poder do olhar?– Suzanne

Degenerado é um quadrinho escrito e desenhado pela autora francesa, Chloé Chuchaudet. A obra adapta/se inspira no livro “La Garçonne Et L’Assassin” de Fabrice Virgili e Daniele Voldman. Que por sua vez, é inspirada em fatos reais, ocorridos na década de 1910, as vésperas, durante e após a Primeira Guerra Mundial. E já dá pra adiantar, este é sem dúvida um dos melhores lançamentos de 2020. E mais um detalhe: obra ganhou o prêmio do Festival de Angoulême de 2014.

A Editora Nemo (A Solidão de um Quadrinho Sem Fim) trouxe a publicação para o Brasil em um excelente formato: Número de Páginas: 192 • Formato: 19 x 25 cm • Acabamento: Brochura. O preço de capa está R$ 69,80. (Link para compra)

A Premissa de Degenerado

A sinopse / premissa partem dos seguintes fatos:

Paris, década de 1910. Paul e Louise se conhecem, se apaixonam e logo se casam. Paul está servindo o exército, quando a Primeira Guerra Mundial estoura e os separa. Ele quer escapar do inferno das trincheiras a todo custo e acaba se tornando um desertor, reencontrando Louise em Paris. Ele está são e salvo, mas condenado a permanecer escondido em um quarto de hotel. Para dar fim a sua clandestinidade, Paul imagina uma solução: mudar de identidade. A partir de agora ele se chamará Suzanne. Entre a confusão de gênero e o trauma da guerra, o casal terá um destino extraordinário. Inspirado em eventos reais, Degenerado é a história surpreendente de Louise e de seu marido travesti, que se amaram e se separaram na Paris dos loucos anos 1920.

Ou seja, Degenerado é em sua essência uma história de amor, romance, guerra e que depois vai lidar com questões extremamente complexas quanto ao gênero / existencial. Sobre alguém que realmente não sabe mais quem é, e como isso vai impactar a sua esposa Louise, e a sociedade como um todo. A sinopse parece até entregar muita coisa, mas quando vamos apreciando a obra, vemos que existem diversas camadas que a autora sabe trabalhar com maestria e que nos vão levar a desdobramentos inacreditáveis.

Paul, Louise e Guerra

Em Degenerado temos uma bela história de romance que nos é contada de maneira muito natural e bonita. Sendo pelos diálogos ou pela arte da autora, é incrível acompanhar como Paul e Louise se conhecem, se apaixonam e se casam. A combinação de texto e arte de Chloé Cruchaudet é impressionante. Facilmente somos transportados para a França dessa época. E desta forma, ficamos encantados com o romance deles. Assim como em seguida, vemos os retratos da 1º Guerra, que nos é mostrado de uma maneira crua e real. E por conta deste impacto, e tudo que o cerca, é que Paul decide de uma vez por todas que tem que sair dali. Precisa desesperadamente de um jeito de voltar para casa. De voltar para Louise.

E para que esse retorno ocorra, ele faz um atitude desesperada. E agora como um desertor, ele não pode mais andar por ai livremente, já que traiu o seu país. Se for pego, possivelmente será executado. Então com a ajuda de sua esposa, Paul acaba ficando alojado em um pequeno quarto de um hotel. Aquele seria o seu mundo a partir dali. Até que a guerra acabasse e talvez a sua liberdade fosse reconquistada. Mas enquanto isso não ocorria, como seria a vida de Paul e Louise, naquele quarto de Hotel? Sem TV nem nada do tipo para distrair. Como Paul venceria o tédio, o marasmo e superar o seu trauma de guerra.

E acompanhar essa transição do romance, guerra e exílio, mostra o quanto Degenerado é um baita quadrinho, pois transita em diversos temas com propriedade. Mas o mais impactante, ainda estaria por vir.

Suzanne

Trancafiado em seu quarto de Hotel, Paul começa a surtar. Mesmo com toda a ajuda de Louise, que está sustentando os dois com seu trabalho de costureira, Paul se sente literalmente preso. Além de não conseguir ajudar nas economias, a falta de liberdade faz com que ele se desgaste cada vez mais naquele quarto de hotel. Ele precisa respirar, precisa viver. Certa noite, depois de uma discussão com sua esposa, Paul se arrisca a sair nas ruas. Mas não como Paul, já que ele havia pego as roupas da esposa e colocado por cima. E nessa breve saída, ele tem novamente um breve vislumbre da cidade e de como é respirar fora daquele quarto.

Como essa tentativa deu certo, ele pede a Louise que o ajude com esse disfarce uma vez mais, para que ninguém desconfie, e assim ele possa voltar a ter a sua liberdade, mesmo que parcialmente dadas as devidas circunstâncias. E assim, Paul acaba mudando de identidade e se tornando Suzanne. Ou seja, ao sair na rua Paul dava lugar a Suzanne. E isso acaba funcionando muito bem, pois assim Paul retoma parte de sua liberdade, conseguindo não apenas sair, mas também interagir com outras pessoas.

Sempre contando com a ajuda de sua esposa, o disfarce de Paul é um sucesso. Mas, com o passar do tempo, Suzanne passa a ser mais do que um disfarce, assim ganhando cada vez mais espaço na vida do casal. E isso traria grandes impactos para a vida deles.

Mais uma vez a combinação praticamente perfeita de texto e arte fazem com que não consigamos desgrudar os olhos da página. A autora tem total domínio do que ela quer nos passar. E acompanhar essa transição de Paul / Suzanne e Louise para essa nova etapa do casal é algo que fica marcado para o leitor. Ainda mais pelo que viria a seguir.

Quem sou eu?

Como vimos na própria sinopse de Degenerado, eis que aqui tempos um ponto crucial da história. Quando surge Suzanne, aos poucos ela vai ganhando mais e mais espaço na vida de Paul e Louise. E não apenas pelo fato de agora ele sair assim de dia e começar a trabalhar. Existe algo mais acontecendo. Novos horizontes vão sendo abertos, e novas percepções vão surgindo. E as poucos o disfarce de Suzanne começa a ganhar cada vez mais vida.

O relacionamento de Paul e Suzanne sempre foi permeado por amor, mas também haviam momentos de tensão, brigas e outras coisas. Muito por conta da condição de Paul, o trauma de guerra, a sobrecarga e responsabilidades que Louise arcava sozinha, desencadeavam algumas discussões feias. E agora com o fator Suzanne em jogo, é como se uma terceira pessoa tivesse entrado na vida do casal.

Quando isso passa a acontecer com mais frequência, a história vai tomando rumos cada vez mais inesperados. São fatos cada vez mais chocantes e pesados, daqueles plot twists de simplesmente explodir a cabeça do leitor. E isto não apenas a Paul / Suzanne, mas outros fatores vão nos sendo apresentados que são surpreendentes envolvendo a sociedade em que eles estão inseridos. E as questões levantadas quanto essência de Paul, deixam o leitor com diversas hipóteses na cabeça, quanto a sua sexualidade, quanto a sua essência e afins. Os personagens são extremamente complexos e bem trabalhados.

E tudo isso acontece de uma maneira tão bem contada que, quando as coisas vão simplesmente desencadeando um série de acontecimentos, sentimos os impactos. Assim, temos que retomar o folêgo e voltar para a leitura. Se pegarmos o quadrinho em suas primeiras páginas, jamais imaginaríamos que em sua reta final as coisas chegariam a tal ponto. Degenerado é isso, um quadrinho que simplesmente tira o leitor de sua zona de conforto e nos apresenta algo perturbador e chocante. Traz questões muito pertinentes também ao modo como a sociedade em si funciona, nas regras de homem e mulher. E o quanto isso pode ser nocivo para as pessoas.

E só lembrando que Paul / Suzanne estiveram nessa condição por mais de dez anos.

Degenerado, vale a pena?

A resposta para essa pergunta é bem obvia devido a tudo que falamos no decorrer da postagem. Sem dúvida alguma, Degenerado é um quadrinho que vale a pena. É uma obra direcionada a um público adulto, já que conta com cenas de violência, sexo e afins. É um quadrinho que desafia o leitor, tamanha é a perfeição da narrativa executada por Chloé Cruchaudet. Pois, quando nos damos conta, já fomos fisgados para dentro da história a muito tempo. E por isso, os fatos que vão nos sendo apresentados se tornam tão impactantes.

Se você tiver um dinheiro sobrando, Degenerado é um quadrinho que vale totalmente o investimento. A edição da Nemo está bem caprichada e conta com alguns extras bem interessantes, que ajudam a enriquecer ainda mais a obra. E lembrar que isso tudo foi real, a mais de 100 anos atrás, dá ainda mais força para a obra, já que os tabus daquela época eram ainda mais ferrenhos dos que os de hoje.

Degenerado é uma obra ímpar que com certeza vai figurar em listas de melhores do leituras de 2020 de muita gente. E não é para menos, um quadrinho de extrema qualidade, que soube abordar assuntos dificílimos, e ainda assim soube dosar muito bem tudo isso em um equilíbrio perfeito entre roteiro e arte. Um quadrinho que é impossível ficar indiferente e que com certeza vai explodir a sua cabeça.


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ANÁLISE CRÍTICA - NOTA
Degenerado (HQ de Chloé Cruchaudet) - Resenha
André Betioli
Contador formado e atuante de profissão. Grande fã da cultura pop em geral. Amante da cinema, quadrinhos e animes, e através disso tentando entender um pouco mais da realidade através da ficção. Considero Os Cavaleiros do Zodíaco a melhor coisa já feita pela humanidade.
degenerado-hq-de-chloe-cruchaudet-resenhaUma obra ímpar sobre amor, guerra, questionamento sobre si mesmo e a sociedade. Um dos melhores quadrinhos de 2020. Uma leitura que faz com que o leitor saia da zona de conforto ao trazer diversos questionamentos quanto a forma como a sociedade / individuo funcionam.

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