Raquel 1:1 – Resenha

Uma ousada alegoria sobre o real terror religioso-patriarcal. Confira nossa resenha de Raquel 1:1

Uma ousada alegoria sobre o real terror religioso-patriarcal. Confira nossa resenha de Raquel 1:1

poster do filme raquel 1:1. A protagonista surge em destaque (Valentina Herszage), de olhos fechados em um fundo chapado vermelho
Créditos: O2 Play

Obras de terror nacional ocupam um espaço underground na arte brasileira há décadas, de modo especial o cinema, fato este que torna muitas destas obras “cult” com o passar do tempo. Porém, em anos mais recentes, filmes do gênero tem alcançado circuitos de cinema mais amplos, públicos maiores e produção – incluindo elenco – mais encorpados e renomados. Raquel 1:1, certamente, é do tipo de produção que se soma a este movimento.

Dirigido por Mariana Bastos (Alguma Coisa Assim) e estrelado por Valentina Herszage (Hebe, Quanto Mais Vida, Melhor!), Raquel 1:1 estreou em 2022 no South by Southwest (SXSW), festival global que promove negócios na arte, tecnologia e mais diversos segmentos, e chega aos cinemas brasileiros esta semana.

Confira abaixo a sinopse do filme e, em seguida, as impressões do Meta Galáxia!

Sinopse de Raquel 1:1

Em Raquel 1:1, a personagem título, Raquel (Valentina Herszage) é uma adolescente religiosa que chega a uma pequena cidade do interior onde nasceu, em busca de uma vida nova junto ao seu pai, Hermes (Emílio de Mello). A cidade vive um forte senso de comunidade, que é permeado por uma fé cristã conservadora que abarca praticamente todos seus habitantes.

Inicialmente persuadida à fé comunitária do local, Raquel vive um misterioso acontecimento que lhe faz embarcar numa controversa missão ligada à Bíblia e a traumas de seu passado. Ao lado de suas novas amigas, um grupo de garotas evangélicas da igreja local, Raquel mergulha na sua espiritualidade e tenta se encontrar dentro de uma espiral de fé, razão e loucura.

Fé, paganismo, loucura e rebeldia

Desde o princípio, Raquel 1:1 envolve o espectador em uma aura sombria, ainda que não nos demos conta exatamente do porquê de tal sensação e sentimento. Essa manifestação visual, que se dá na trilha sonora e na fotografia sombria, é constante e importante para a imersão pretendida pela direção, que a princípio, pode parecer descompromissada, mas não é nem um pouco gratuita.

Os elementos que permeiam a trama vão surgindo aos poucos. A nova casa (que na verdade é velha, pertencente a Hermes), dotada de símbolos católicos por todos os cantos, contrapartida pela ausência de luminosidade; o caderno de Raquel repleto de desenhos perturbados e anotações diversas; os olhares desconfortáveis trocados constantemente entre os personagens; e os sussurros (ou lembranças) de Raquel sobre a violenta morte da mãe, ecoados vivamente em forma de voz na sua cabeça.

Enquanto esses elementos se somam ao inconsciente do espectador, acompanhamos a trama central: o envolvimento de Raquel com a igreja local, que possui as características típicas de um culto extremamente conservador e literal quanto ao rito bíblico. Seus devotos inclinam-se a diversas privações, que logo podem ser caracterizadas como princípios de uma seita.

cena de raquel 1:1 mostra a protagonista no púlpito da igreja, que tem ao fundo um papel de parede de céu. em volta dela, orando, estão a pastora e sua filha, numa alusão à exorcismo
Crédito: O2 Play

Raquel, que após a morte da mãe inclinou-se sobre a fé como refúgio, logo cede-se ao culto, mas não demora a enxergar nele controvérsias. E sua visão quanto a isto é “libertada” após um chamado de caráter aparentemente sobrenatural, durante uma saída com as amigas em meio à mata, quando depara-se com uma gruta e uma casa abandonada. Seu comportamento passa a mudar e ela toma uma postura de confronto quanto ao culto, questionando os princípios machistas que aponta na bíblia.

A partir disso, a garota passa a encabeçar um princípio de rebelião, erguendo a bandeira do revisionismo histórico bíblico diante do machismo perpetrado pelo livro – que, como é demonstrado em uma pesquisa feita pela personagem no longa, foi escrito tão somente por homens. Tem início, então, um conflito místico/psicológico que coloca em xeque a doutrinação pela fé e como ela está na raiz (ou mesmo se apresenta como uma das principais sementes) do patriarcado e suas consequências desastrosas para a sociedade.

Há, nesse desenrolar, um amálgama de ideias sobrenaturais, sociais e psicológicas, que deixam em aberto hipóteses de doenças da mente, visões místicas e mesmo se ambas as situações coexistem. Se por um lado tal mescla cria uma atmosfera de constante mistério para o espectador quanto ao desfecho e entendimento do todo para o que realmente se passa com Raquel, por vezes esta alternância torna a narrativa um pouco confusa.

Todavia, tal confusão – que pode ou não ser proposital – não deixa de bem estabelecer o principal argumento da obra: a relação entre o conservadorismo e o patriarcado, cuja perpetuação traz, há séculos, dor, sofrimento e morte.

Dedo na ferida

“Você acredita que as mulheres devem ser submissas?” questiona Raquel à colega Ana Helena, filha da pastora da igreja local, ao destacar que tal mensagem é enfatizada o tempo todo no Antigo Testamento. A garota titubeia de leve, mas responde que as escrituras são sagradas e absolutas. Ela não se importa com a real resposta e nem em responder seu pensamento de fato, apenas reproduz um discurso escutado em casa, na igreja, em todo canto. Há séculos.

O questionamento de Raquel é o ponto de virada da trama para que ela embarque na jornada de “reescrever a Bíblia” sem os versículos considerados machistas. Não demora para que ela abarque outras garotas, bem como não tarda aos moradores taxarem a jovem como uma herege e tornarem sua vida um inferno. Vale lembrar que Raquel também é um nome bíblico do Antigo Testamento, que, segundo as escrituras, era ligada ao paganismo e teria furtado ídolos da casa de seu pai, de acordo com o livro de Gênesis.

Há dois pontos interessantes sobre a trama. Hermes, pai de Raquel, foi quem a incentivou a buscar apoio religioso após a morte da mãe. Porém, ele próprio não é um homem de fé, e passa a se preocupar com o rumo que a filha começa a tomar. E, como dito acima, em dado momento a própria Raquel passa a questionar os limites da fé, e ao tornar sua genuína dúvida sobre ela algo público, causa uma terrível comoção.

Tal perturbação consequente deste questionamento pode parecer fantasia de cinema, mas longe disso; aponta a uma ferida tão real quanto cada vez mais recente. Basta ver o crescimento da onda conservadora no país, onde um livro sobre cultura africana é retaliado com correções à mão para que o livro de Gênesis seja apresentado às crianças como “real origem da vida”.

Do segundo para o terceiro ato, a garota novata na cidade encarna um papel de liderança para a libertação de um modesto, mas corajoso grupo que se coloca diante da opressão propagada pela cidade e sua fé. E, como na Idade Média, as mulheres que apontam para a liberdade são eleitas as bruxas. E como tal, devem ser caçadas.

Há diversas alegorias no filme de Mariana Bastos para trazer luz a estes pontos e eles são bem explicitados. À medida que o passado de Raquel vem à tona e a verdade sobre a morte de sua mãe surge, o argumento principal do filme ganha mais força para dar a obra um desfecho potente.

Em conclusão

Raquel 1:1 discute seus temas de forma envolvente e impactante, com uma protagonista que carrega a trama quase que por si só (aliás, excelente a atuação de Valentina Herszage). Entretanto, a maior parte dos elementos sobrenaturais apresentados menos somam à resolução da trama e mais servem à criação da atmosfera sombria e imersiva do filme.

Se por um lado os elementos místicos não entregam tanto ao enredo, eles são bastante eficientes na condução do desconforto (tão indispensável ao terror) que o longa deseja provocar. Mas o trunfo do filme não está nesses elementos, e sim no uso do gênero para a finalidade.

Por sua proposta bastante distinta, Raquel 1:1 merece atenção e destaque como uma obra de terror psicológico que foge do lugar comum das criaturas, sustos e mortes despejadas aos montes. É um filme que utiliza-se do medo e do obscuro para jogar luz sobre as sombras mais pavorosas existentes: a do horror da vida real. Da fé cega, do machismo enraizado, que perpetua preconceitos, privações, abusos e mortes, em um momento em que o feminicídio atinge recordes no país. O horror, mais que uma categoria de entretenimento, tem o poder de causar ojeriza e escandalizar para denunciar, e Raquel 1:1 o faz de forma muito competente.

Quando estreia Raquel 1:1?

Distribuído pela O2 Play, o filme chega aos cinemas de todo país na quinta-feira, 23 de março. Confira abaixo o trailer de Raquel 1:1.

Siga o Meta Galáxia e veja mais resenhas e notícias de filmes!

ANÁLISE CRÍTICA - NOTA
Raquel 1:1
Diego Betioli
Escritor, publicitário, louco por esportes e entretenimento. Autor de A Última Estação (junto com Rodolfo Bezerra) e CEP e um dos fundadores do Meta Galáxia.
resenha-de-raquel-11Raquel 1:1 merece atenção e destaque como uma obra de terror psicológico que foge do lugar comum das criaturas, sustos e mortes despejadas aos montes. É um filme que utiliza-se do medo e do obscuro para jogar luz sobre as sombras mais pavorosas existentes: a do horror da vida real. Da fé cega, do machismo enraizado, que perpetua preconceitos, privações, abusos e mortes, em um momento em que o feminicídio atinge recordes no país.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here