Resenha do quadrinho nacional, Luzes de Niterói, com roteiro e arte de Marcello Quintanilha
” Eu queria dedicar esse gol… a uma pessoa… queria dedicar essa vitória… a uma pessoa que eu tenho a impressão de que deve tá ouvindo o jogo agora… essa pessoa… é um grande amigo meu… o nome dele é…” – Hélcio em Luzes de Niterói
Luzes de Niterói é um quadrinho nacional lançado em 2019, e que conta com roteiro e arte de Marcello Quintanilha (Tungstênio, Talco de Vidro), um dos grandes nomes do cenário nacional (e mundial) quando se fala da nona arte. A obra foi publicada pela Editora Veneta, e a edição conta com capa dura e cerca de 232 páginas.
Quintanilha se tornou ao longo dos anos um dos nomes mais influentes no meio dos quadrinhos, e muito disso se deve ao seu estilo único de narrar essas histórias. E aqui em Luzes de Niterói, não foi diferente, pois nos deparamos com uma grande obra.
(Um pequeno adendo: muito da história aqui é baseada em fatos reais, já que o pai de Quintanilha era jogador de futebol. Então a história é feita com o poder da narrativa já característica do autor, em conjunto de muitas de suas lembranças / heranças.)
A premissa de Luzes de Niterói
A história se passa no Rio de Janeiro durante a década de 50, e no meio desse cenário temos dois personagens principais que irão conduzir a narrativa. Um deles é Hélcio, um jogador de futebol profissional de um time pequeno e que tem aspirações em conseguir construir uma carreira vitoriosa no mundo futebolístico. O outro personagem é Noé, um grande amigo de Hélcio, e é um cara querido por todos do bairro, levando uma vida humilde.
Certo dia os dois estão na praia quando avistam um pescador jogando bombas na água para conseguir assim matar o maior número de peixes. Os dois observam aquilo e sabem que o pescador não conseguirá pegar / levar todos aqueles peixes sozinho. Logo, os dois têm a ideia de ir até lá com um pequeno barco e assim pegar uma parte desses peixes e depois vender, e assim faturar uma grana. E quando eles partem nessa simples empreitada, os rumos daquele dia tomam direções totalmente inesperadas.
Um dia ao acaso
Ao ler Luzes de Niterói, somos apresentados aos nossos protagonistas, e logo nos afeiçoamos a eles. Muito por conta da maneira como eles interagem entre si, já que os diálogos são muito bem trabalhados. Hélcio e Noé saem em busca dessa chance de ganhar um dinheiro, mas os dois jamais imaginariam os rumos e desdobramentos que essa decisão iria acarretar.
Tinha tudo para ser um dia normal, algo simples de se fazer. E aqui temos um dos (porque existem outros) grandes pontos positivos da obra: a sua imprevisibilidade. É muito interessante acompanhar a história desses dois amigos e ver os caminhos e situações das quais eles irão passar. Teremos situações com maior descontração, outras com tensão, e momentos onde os personagens serão levados ao limite, chegando a decisões de vida e morte. E isso reverberaria não apenas na questão de viver ou morrer, mas também colocaria a prova a amizade entre os dois.
Brasilidade
Uma das características mais marcantes dos trabalhos de Quintanilha, é a voz que ele dá a seus personagens. Assim como em suas outras obras, aqui em Luzes de Niterói não é diferente. Existe todo um cuidado ao trazer toda a atmosfera da região e da época em que a história se passa. Com isso, vemos os personagens usando as gírias da época e do local ao qual eles estão. Isso pode soar um pouco “estranho” no começo por conta do leitor não estar ambientado a aquele cenário.
Mas, isso vai ficando mais natural com o virar das páginas, e assim como se fossemos viajar e logo vamos pegando os dialetos locais. Aqui é praticamente a mesma coisa. Ou seja, a obra de Quintanilha tem tanta vida que parece que somos literalmente transportados para o Rio de Janeiro na década de 50, e assim notamos o quanto a Luzes de Niterói faz com êxito apresentar essa brasilidade.
Outro fator que acentua bastante esse fator, é trazer para as páginas de Luzes de Niterói o futebol. O esporte mais popular do mundo (e paixão nacional) é retratado aqui de maneira sublime por Quintanilha. Em determinado momento nos sentimos realmente dentro de um estádio de futebol ou escutando o jogo pelo rádio de pilha junto aos amigos. Pois aqui, o futebol é um dos temas condutores que fazem de Luzes de Niterói tão memorável.
O domínio da Narrativa / Tempo
E vale elogiar uma outra coisa a respeito de Luzes de Niterói: o domínio da narrativa de Quintanilha. Quando falamos isso, o que estamos querendo dizer é que o autor realmente sabe o que está dizendo, e consegue transmitir isso com exatidão ao leitor. Esse acerto é algo muito raro de se encontrar em uma obra de quadrinhos.
Em Luzes de Niterói vamos notando isso principalmente pelas situações as quais os personagens são inseridos e em como isso nos é mostrado, seja pela arte, pelo texto, ou ambos. Há momentos que passam “rápido” e outros mais “demorados”, mas isso dependendo do ponto de vista dos personagens dentro do contexto ao qual eles estão inseridos.
Exemplo disso é o momento da tempestade do em alto mar, onde nota-se todo o desespero dos personagens, e aquilo chega a ser agoniante de acompanhar. Isso é fruto da narrativa ímpar de Quintanilha que consegue nos passar exatamente essa sensação de desespero. Outro momento desse é o mergulho de Hélcio, quando ele vê sua vida passar por seus olhos por um breve momento. Esse domínio de narrativa / tempo de Quintanilha é primoroso.
Os Laços de Amizade
Além de toda brasilidade, o domínio na narrativa em um casamento perfeito entre roteiro / arte, ainda temos mais um ponto crucial de Luzes de Niterói que precisamos falar. O desenvolvimento da amizade entre Hélcio e Noé. Durante a trama, os dois personagens passam por muitas (muitas mesmo) situações que os colocam em diversos testes. Seja apenas para conseguirem voltar para casa, ou para justamente lutar pela própria vida.
Em meio a tudo isso, vamos conhecendo um pouco mais do passado dos dois personagens, principalmente de Hélcio. E com isso sendo apresentando, aos poucos vamos nos afeiçoando mais e mais aos nossos protagonistas. Pois a relação de amizade deles é na verdade o grande cerne da obra. Pois a partir de um dia comum, acaba se desenrolando uma coisa totalmente caótica e imprevisível, e isso põe a prova os laços de amizade desses dois.
Os diálogos deles são simplesmente primorosos. Fica muito evidente a amizade do dia a dia destes dois, pois eles são realmente amigos de verdade. E com os backgrounds apresentados vamos sentindo o peso disso cada vez mais. Devido a alguns momentos da trama, há uma percalço que nasce e que questiona a essência da amizade entre Hélcio e Noé.
A essência de Luzes de Niterói está na amizade desses dois grandes amigos. E isso realmente nos propicia momentos realmente bonitos, tensos e reflexivos. Em dois momentos específicos durante a história, isso é abordado de forma brilhante e humana. O que acaba fazendo com que os nossos olhos sejam convidados a suarem um pouco.
Luzes de Niterói, vale a pena?
Bem, depois de todos os elogios que fizemos no decorrer desta postagem é até meio redundante questionar se Luzes de Niterói vale a pena. Sem duvida alguma que sim, pois esse é sem dúvida um dos melhores (senão o melhor) trabalhos de Quintanilha. Luzes de Niterói é aquele quadrinho que você pode demorar um pouco pra engrenar caso não tenha tido tanto contato com outras obras do autor. Mas a partir do momento em que você se situa, o leitor simplesmente viaja junto com os protagonistas nessa que é uma obra-prima da nona arte.
Enfim, Luzes de Niterói é uma obra ímpar e é uma excelente porta de entrada para quem procura algo fora do universo de super-heróis. Ou, que também queiram começar a ver algum quadrinho nacional. Para ambos os casos, Luzes de Niterói é uma escolha perfeita. É uma obra apaixonante com pessoas que se parecem com a gente, são “personagens” humanos e incríveis. Um belo recorte da vida e que versa de maneira sublime sobre a força da amizade.
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