O HOMEM CORDIAL: RESENHA

Iberê Carvalho faz thriller tenso do começo ao fim e propõe temas inevitáveis do nosso momento em O Homem Cordial

Aurélio (Paulo Miklos) toca guitarra em O Homem Cordial
Paulo Miklos é Aurélio, líder de uma banda de rock dos anos 80. O papel lhe valeu o Kikito de Melhor Ator, em 2019

Cultura de cancelamento, racismo, abuso policial, desigualdade social e até revival de banda do século passado. O Homem Cordial, de Iberê Carvalho, reúne tudo isso em menos de uma hora e meia de tensão constante. Soa como mais uma película fadada a ficar rapidamente datada?

Escrito em 2016 e filmado em 2018, só agora, no próximo dia 11 de maio, o longa estreia nos cinemas. Apesar dos 7 anos entre o roteiro e o lançamento, a trama não dá qualquer sinal de que tenha envelhecido. As discussões que propõe seguem representando um complexo desafio para a nossa sociedade. Sobre a demora no lançamento, o diretor afirmou não duvidar que as dificuldades enfrentadas para colocar O Homem Cordial no circuito foram influenciadas pelo governo anterior, de extrema-direita e bastante identificado com os temas centrais propostos pela obra. 

O título se inspira no conceito de Sérgio Buarque de Holanda e explora o viés de irracionalidade emotiva da cordialidade como padrão de comportamento das personagens. E já que cordial vem do latim cordis, coração, seria exagero imaginar que o episódio do infarto, logo na primeira parte do filme, seja uma metáfora da necessidade de reiniciar a forma com que nos relacionamos em sociedade?

O clima de tensão vem desde a sequência inicial: acompanhamos por vídeos de celular o tumulto que dispara tudo o que está por vir. A câmera inquieta, sempre próxima das personagens, ajuda a colocar o espectador no meio do turbilhão que acontece em um dia na vida de Aurélio, interpretado por Paulo Miklos. 

Líder de uma banda de rock dos anos 80 que tenta voltar ao estrelato, Aurélio se torna alvo de cancelamento. Tudo o que sabemos, até então, é que ele está sendo acusado de provocar a morte de um policial, sendo hostilizado em todos os lugares – no show, na rua, em frente à sua casa.

Aos poucos, vamos descobrindo mais detalhes – ele tentou defender um garoto negro, acusado de roubar um celular. O policial à paisana que estava no local da confusão inicial acabou assassinado. Não sabemos onde, como ou por quem; se a acusação era verdadeira ou falsa. São dois pontos fundamentais na narrativa: ninguém tem todos os fatos, e o garoto está desaparecido – sugerindo, também, o apagamento da pessoa marginalizada.

Instintiva e automaticamente as pessoas fazem seu julgamento que, no contexto de ódio e cancelamento na internet, acontece na intensidade em que os vídeos viralizam. Em uma demonstração da inversão da pirâmide de influência, Aurélio (a celebridade, a pessoa q teria voz na sociedade) é reconhecido e encurralado por aspirantes a influenciadores digitais. Ao ser hostilizado, pergunta aos agressores como se chamam, mas não é atendido pelos “anônimos”.

Apesar de toda a exposição (e exploração) midiática, a verdade não vem à tona. Só os espectadores, ao final, sabem o que realmente aconteceu. O que sobra é a apressada interpretação dos fatos, que o roteiro enfatiza ao fazer tudo acontecer em apenas um dia. Todos criam suas realidades baseadas apenas na sua percepção individual, sejam transeuntes do bairro rico, polícia, influenciadores digitais, jornalistas, mídia independente. E todos são precipitados, seja por racismo, ódio e preconceito.

Ou ainda por levar a vida na bolha confortável do privilégio racial, como afirmou Iberê Carvalho no Festival de Gramado: “Esse é um filme sobre branquitude. Sobre ser branco nesse cenário e o que fazer”.

A formação de retorno da banda Instinto Radical: Carlão (Bruno Torres), César (Mauro Shames), Aurélio (Paulo Miklos) e Nico (Theo Werneck)
A formação de retorno da banda Instinto Radical: Carlão (Bruno Torres), César (Mauro Shames), Aurélio (Paulo Miklos) e Nico (Theo Werneck)

No caso de Aurélio, só depois de ser cancelado ele decide reencontrar o amigo Béstia (Thaíde). Parece que não se veem desde quando  – sintomaticamente – o integrante negro foi excluído da banda. Intitulado “Instinto Radical”, o grupo se encaixa no perfil típico do rock nacional daquela época: jovens brancos de classe média cantando letras de protesto – por vezes, vazios ou ingênuos, como nos mostra o destino que levaram alguns nomes da época. E a ingenuidade dá o tamanho do privilégio.

Hoje, Béstia tem um bar perto de onde mora Mateus (Felipe Kenji), o garoto desaparecido desde a confusão daquela manhã. Fica no Jardim Ibirapuera, bairro situado no Jardim São Luís, que em 2016, quando o roteiro foi escrito, ocupava o 75º lugar no ranking de IDH entre os 96 distritos de São Paulo. Naquele mesmo ano, estava na lista dos 10 distritos policiais com maior número de das mortes decorrentes de intervenção praticadas por policiais.

Ao ouvir a opinião de Aurélio sobre o que está acontecendo, Béstia lhe diz:

“Meu irmão, esse mundo, visto pelos seus olhos de branco, deve ser lindo. Maravilhoso!”  

E as maravilhas da vida na branquitude ficam cristalinas na cena final. Será que Aurélio vai cruzar essa linha e enxergar para além das lentes cor-de-rosa?

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ANÁLISE CRÍTICA - NOTA
O Homem Cordial
Yuji Imaizumi
Uma história nunca é só uma história. Minha escala personalíssima das resenhas: [ 1 - 1.5 ⭐: gostei não ] // [ 2 - 2.5 ⭐: nhé ] // [ 3 - 3.5 ⭐: gostei ] // [ 4 - 4.5 ⭐: gostei muito ] // [ 5 ⭐: carai! ]
o-homem-cordialIberê Carvalho faz thriller tenso do começo ao fim e propõe temas inevitáveis do nosso momento em O Homem Cordial para discutir a branquitude e seus privilégios.

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